VAMOS SENTIR DE PERTO A LÍNGUA EM MOVIMENTO

A fala é o foco para a percepção do balanço da língua. De todas as coisas que expressamos oralmente, somente uma ínfima parte é apreendida pelos dicionários e, acreditem, muitas estão destinadas a um obscuro repouso... é isso mesmo! ao asilo das palavras. Não adianta querer ressucitar defunto, dizendo que o latim não morreu, que está vivíssimo entre nós ou com roupagens novas. Morreu sim, e está enterradinho da Silva!Está bem, pode até ter reencarnado, mas ganhou nova identidade... e nova alma! A língua viva está em movimento, na boca do povo, como dizia o saudoso Souto Maior. Pergunto: A esse uso, chamaremos ERRO? Talvez DESVIO? No uso, ela transforma-se e podemos chamar isso de VARIAÇÃO!

domingo, 25 de julho de 2010

DICAS DE PORTUGUÊS

Olá gente,
Lá vai mais uma conversa despretensiosa sobre “a última flor do Lácio inculta e bela”: A língua portuguesa

Contrair ou não Contrair?

Em o, em ele, em aquele, em esse... Construções desse tipo somente devem ser usadas quando o, ele, aquele, forem sujeito do verbo. Não vejo problema em o nome de Jesus ser exaltado. O problema está em ele não usar a contração quando perfeitamente cabível, a exemplo de quando ora em o nome de Jesus e não no nome do Senhor, ou simplesmente em nome de Jesus. Sabemos que o nome de Jesus tem poder, logo, não vejo dificuldade em o nome de Jesus servir de exemplo para compreendermos os processos evolutivos da língua. Isso porque O NOME DE JESUS é o sujeito de SERVIR. Quando, porém, o termo não for sujeito do verbo, deve-se proceder a contração sem problemas, pois a combinação da preposição com o artigo é um fenômeno natural da língua.
Outro exemplo: Apesar de esse nome ter poder para iluminar nossas mentes, faz-se necessário que empreendamos esforços, em termos de buscarmos o conhecimento em forma de pesquisa. Estudamos muito e, apesar disso, muitas vezes, o resultado não reproduz o nosso esforço... é que, às vezes, paramos quando ainda temos energia para um esforço a mais, e, certamente não demos o nosso máximo. Pesquisem e vejam que não há possibilidade de a preposição preceder o sujeito. Veja o que acabo de dizer. Quem não deve preceder o sujeito? A preposição? O sintagma a preposição é sujeito do verbo preceder. Assim, nesse caso, não poderíamos contrair (de + a = da).
Ainda resta dúvida? Só marcando horário.
Um abraço!
Solange Carvalho

quarta-feira, 21 de julho de 2010

ESTUDO VARIÁVEL DO DITONGO EM SALA DE AULA:

Solange Carvalho
Mestre em Linguística/UFPE
Carlos Cordeiro
Mestre/Ciências da Linguagem/Unicap

1 Introdução

Este artigo trata do estudo variável dos ditongos decrescentes orais (ai, ei, ou) em sala de aula, como sugestão metodológica aos professores a ser aplicado em suas salas de aula. O objetivo precípuo do trabalho é levar o professor a instigar os alunos na busca da compreensão da Língua Portuguesa falada no Brasil, a partir do conhecimento da variação e mudança linguística. Acreditamos que a aceitação dessa diversidade, sem preconceito, venha a favorecer o processo ensino-aprendizagem.
A educação no Brasil alimenta o preconceito linguístico quando apresenta uma escola que impõe o ensino da gramática normativa, em que o aluno se vê quase que obrigado a memorizar uma gama de regras, cuja dificuldade fulcral é a distância do uso natural da fala. O falante acredita que a sua “deficiência” está relacionada a sua capacidade cognitiva, achando-se inapto ao aprendizado da língua nativa. Alguns passam a se policiar para não se descuidarem da chamada norma padrão e tornam-se seguidores fiéis dos gramáticos, disseminando assim o preconceito linguístico.
Além do mais, a possível má formação dos professores não contribui para a dissipação de mitos e preconceitos que criam uma ideologia conservadora que instaura nos falantes certa aversão à linguística, até entre os reconhecidamente cultos (BAGNO, 2005, p.78)
Certo estava Gilberto Freyre quando transcreveu nos muros Fundação Joaquim Nabuco, as palavras de João Cabral de Mello Neto: “Ninguém escreveu em português no brasileiro de sua língua”. Desta forma, cabe ao professor, em sua prática pedagógica, esclarecer o aluno a distinção entre o Português do Brasil e o Português falado em Portugal.
É pertinente dizer que a tendência ao apagamento do ditongo já é objeto de estudo de vários pesquisadores linguistas, atestados em várias regiões do Brasil, a saber: Cabreira (1996), que reconhece o apagamento do ditongo /ow/ como categórico na fala espontânea do Português do Brasil, atestados em todos os contextos nas cidades de Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre; Farias e Morais (2002), que estudou o ditongo ow e ey na mesorregião do Pará; Carvalho (2007), cuja pesquisa empírica atesta o apagamento dos ditongos decrescentes orais na fala do recifense, entre tantos outros. Todos esses estudos seguiram os pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística variacionista de Labov (1972).
Ressaltamos a relevância do ensino de processos fonológicos como o apagamento do ditongo na esfera discursiva do professor em sala de aula. Para este estudo, consideramos a variável social escolaridade
Levantamos, (Seção 5) algumas sugestões de prática de ensino do ditongo como estudo variável, em que os alunos – participantes ativos do processo ensino-aprendizagem – poderão observar as diferenças entre o ditongo estudado na gramática e o ditongo observado pelo falante da língua, em situação natural de fala. A partir das atividades realizadas, o aluno terá condições de perceber as lacunas entre a fala e a escrita, observando também que muitas vezes o que o professor tradicional chama de “erro”, na verdade é apenas um reflexo do uso da língua.
Por fim, tecemos algumas considerações finais sobre este estudo, em que pese ser preliminar, forneceu ao ensino do Português falado no Brasil uma contribuição relevante.

domingo, 11 de julho de 2010

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA COMO PONTO DE PARTIDA PARA A COMPREENSÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA

(Trata-se apenas da introdução de uma comunicação apresentada no seminário do EELL/Facho, em 2009)

INTRODUÇÃO

Os maiores problemas de que se queixam os aprendizes, quando se dispõem a buscar a excelência do uso da língua, resultam da assimetria entre a norma e o uso. Este artigo trata das dificuldades linguísticas provenientes das imposições dos rigores gramaticais, muito comum no meio acadêmico e profissional. Ouve-se muito se falar em norma padrão, entretanto é compreensível que essa questão instigue uma série de questionamentos, a saber: que padrão é este que privilegia o falar da classe dominante? Qual o conceito de padrão, senão um modelo que deva ser seguido por todos? Ora, se o uso natural da língua segue um padrão, pressupomos que esse padrão não alcance o agricultor, tampouco alcance as diversidades linguísticas entre as regiões, entre as pessoas de classes sociais diferenciadas! Se a fala foge ao padrão, podemos considerá-la errada? Se existe mesmo unidade em língua, qual a dificuldade no seu uso?
São questões como essas que nos levam a crer na relevância de uma reflexão sobre o estudo da língua, mediante o que se busca compreender o seu uso natural, abrindo espaço assim a uma discussão sobre a realidade da variação linguística e do preconceito linguístico.
Pela observação do social, verificamos o uso variável da língua, ou seja, as pessoas realizam fatos fonéticos dignos de análise. O estudo desses fatos fonéticos variáveis podem ser um excelente caminho para instigar o aluno a uma melhor compreensão da língua, de maneira que para atender aos objetivos deste breve estudo, optamos pela abordagem sociolinguística, na perspectiva de Labov, autor da Teoria da Variação (1972). Segundo o referido teórico, por ser a sociedade heterogênea, a língua deve ser estudada contemplando a sua heterogeneidade.
O objetivo precípuo dessa discussão teórica é possibilitar uma melhor compreensão da língua portuguesa dos aspectos dos fenômenos variáveis recorrentes nas comunidades de fala.

sábado, 10 de julho de 2010

A IMPORTÂNCIA DO ATO DE LER

Entrevistada: Solange Carvalho (UFPE/Fundaj)
Entrevistadora: Madeleine Barros Agrelli (UVA)

1- Até que ponto um reduzido grau de leitura pode interferir na vida de um indivíduo?
R- Precisar o grau e a interferência na vida do indivíduo não é tarefa simples, além do mais a necessidade da leitura (no caso de livros) vai depender de vários fatores, a exemplo das atividades profissionais que exerça na sociedade. Se para sobreviver a contento, baste ao indivíduo fazer a leitura da direção de um ônibus, uma sinalização de trânsito, ou mesmo, apenas o próprio nome, o seu grau de leitura não precisa ser tão elevado. Entretanto se estivermos falando de leitura de mundo... aí adentramos por um outro viés.

2 -Você acha que qualquer leitura é construtiva para o processo de apropriação do saber? Justifique.
R- Isso é relativo. Vai depender do tipo de conhecimento que se queira apropriar. Segundo a Bíblia, o apóstolo Paulo afirmou que se deveria conhecer de tudo e reter o que era bom. Assim se dá com a leitura, podemos ler de tudo, sempre teremos o que aprender, não podemos imaginar que não haja o que aprender na leitura de determinado gênero. A questão é o foco de interesse, uma empresária feminista pode não gostar de livros de receitas, já uma dona de casa, dificilmente deixará de ter um exemplar em sua estante. Acho que aprender nunca é demais, como dizia o grande educador Paulo Freyre é preciso que quem sabe, saiba sobretudo que ninguém sabe tudo, e, que ninguém tudo ignora, no seu livro Pedagogia do Oprimido. O fato é que, se nós alimentamos preconceitos, e o fazemos, deixamos de nos interessar por determinadas leituras que somente nos enriqueceria, em termos de aquisição cultural. Em termos de apropriação do saber, todo tipo de leitura é válido, a depender do foco de interesse, entretanto, algumas leituras tem seu aspecto negativo quando interfere na ortografia por exemplo, se temos o costume de ler autores desavisados do ponto de vista da escrita, isso pode ter uma interferência negativa nesse aspecto.

3- Você concorda com a professora Nelly de Carvalho (UFPE) quando diz: “Quem ler mais, erra menos? Em que aspecto?
R- Plenamente! Nossa mente funciona como uma câmara fotográfica, quando lemos, absorvemos as formas como são escritas as palavras, enriquecemos nosso acervo lexical. Podemos sequer lembrar a regra ortográfica que implica em determinado lexema, mas certamente saberemos como escrevê-lo, pois está fotografado lá no aparato mental.

4- Em que aspecto pode-se dizer que a leitura interfere na escrita?
R- A leitura interfere na escrita em vários aspectos; na ortografia, como já mencionado na questão anterior, no estilo absorvido de determinado autor, nos termos relacionais usuais, no conteúdo, pois quem ler mais passa a ter mais ideias, a partir da leitura de outros pontos de vista, o leitor vai formulando os seus próprios pontos de vista. O indivíduo que não tem o hábito de ler, quando escreve terá o hábito de escrever fonologicamente, ou seja, da maneira como fala, e, como sabemos, a linguagem escrita diverge da linguagem falada. A linguagem falada tem o recurso do extralinguístico para auxiliar na comunicação, ou seja, um gesto, um olhar de aprovação ou reprovação, um morder de lábios. O falante vai fornecendo pistas de contextualização que auxilia o seu interlocutor interagir, fazer a leitura dessas sinalizações e até mudar de atitude...a linguagem escrita, não tem o auxílio dos fatores extralinguísticos, por isso tudo que se quer dizer, é preciso ser dito, do contrário não se fará entender. A leitura vai nos dar o conteúdo, por isso quando escrevemos, fazemos citações, referenciamos e usamos a intertextualidade, um dos critérios da textualidade. Somente quem tem o hábito de ler pode lançar mão de tais recursos.

5- O que significa a seguinte assertiva sobre o gênero HQ: “são atrofiadores de mentes”. Você concorda? Comente os aspectos positivos e/ou os negativos.
R- Não sou tão radical a esse ponto, mas compreendo o que o autor dessa assertiva quis dizer. Se viciamos a nossa mente a ler somente com o recurso da visualização, estamos nos condicionando a repugnar qualquer leitura que não tenha imagem. Outro ponto a ser discutido é que os elaboradores de tais textos, não têm a preocupação necessária com a linguagem escrita, com a normatização da língua. Temos por exemplo uma crítica a fazer nas falas do personagem Chico Bento, cujo exagero em pontuar seus erros na escrita não condizem com a realidade da própria escrita. Chico Bento jamais pode ter problema com acentuação, pois ele fala acentuadamente, mas quem escreve, com a intenção de mostrar que ele “fala errado”, não coloca os acentos gráficos nas palavras, ou, mais absurdo ainda, registram problemas de ortografia da fala de Chico Bento, um exemplo grosseiro, se o personagem pronuncia uma palavra com ch, o escritor grafa com x, só que do ponto de vista fonético tais fonemas são idênticos, o dígrafo ch tem o som de x, se ele diz “cheiro”, vão escrever xero. Enfim, há um exagero que pode ser prejudicial aos leitores que estão no processo de aquisição da linguagem. Já as tiras de Mafalda são interessantíssimas, criativas e inteligentes. De modo que os aspectos positivos desse gênero textual estão na fruição e na criatividade de algumas tiras e também, no gosto pela leitura, quando se está ainda no início do processo. Os negativos, como já foram vistos estão relacionados ao condicionamento visual e às questões ortográficas.

6- Qual a relação entre letramento e a leitura de impressos?
R- Uma pessoa que ler muitos impressos tem hábito de leitura. Inferimos disso que ela naturalmente tem grau elevado de letramento, posto que adquire novos saberes através da leitura. Não podemos dizer, entretanto, que o letramento está relacionado apenas a esse tipo de conhecimento absorvido por livros, revistas etc, mas a vivências de mundo, conhecimentos partilhados, experiências compartilhadas, afinal, a vida é uma grande escola, não sabemos como levantar um muro de arrimo, mas o pedreiro tem letramento suficiente para isso; podemos não saber como fazer uma roupa, mas um alfaiate tem todas as técnicas para fazê-la. Há pessoas que não foram à escola, mas tem um elevado grau de letramento, por conta da leitura que faz do mundo. Paulo Freire também já disse que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, tal leitura contribui para a formação do senso crítico, e isso deve ser considerado.

7- A leitura de hipertextos pode ser muito construtiva para o processo de aquisição de conhecimento pelo aluno. Comente essa afirmativa.
R- Acredito que a leitura de hipertexto é a nova ordem da educação no mundo informatizado. Não há como se fazer uma leitura linear no hipertexto, pois sempre haverá os links para direcionar o leitor para onde ele quiser ir. Há aquelas leituras em impressos que levam o leitor a buscar outros conhecimentos, em enciclopédias, por exemplo, esse tipo de leitura também não é linear. A Bíblia, por exemplo, não pode ser compreendida linearmente, há sempre a necessidade de se buscar a relação em outro texto dela mesmo, a leitura da bíblia é, por conseguinte, hipertextual. A não-linearidade do hipertexto exige do aprendiz um esforço maior para buscar outros entendimentos, sem dúvida, essa busca enriquece o processo de ensino-aprendizagem, o aluno não recebe de mão beijada a interpretação textual, ele vai fazer a sua própria interpretação, a partir de suas buscas. Isso é muito construtivo para o processo educacional. A mídia eletrônica veio para facilitar esse esforço do aluno pesquisador, o aluno que quer saber sempre um pouco mais. Fora de controle. A aprendizagem do leitor hipertextual está fora do controle do professor e isso (isto) é muito positivo.

8- O que é falar bem? Você acha que tem relação direta com a leitura?
R- No meu ponto de vista, falar bem é se comunicar bem, é saber se comunicar pelos diversos gêneros textuais.

9- Que estratégias motivacionais você usa com seus alunos como incentivo à leitura?
R- Distribuo com eles vários livros, coloco sobre o birô, peço que eles leiam a orelha do livro, o resumo da história e escolham para ler aquele cuja história mais o interessou. Ninguém fica de fora da atividade, pois todos têm que contar a história que leu para os colegas e para mim. Outra estratégia é fazer uma leitura coletiva de um único livro, eles levam para casa para lerem três capítulos, quando chegam na sala, comentamos, depois leio com eles mais um capítulo ou dois, a depender do tamanho do capítulo, depois peço para eles levarem para casa para lerem mais três capítulos, depois aumentamos até concluir o livro. Seleciono o final das próximas aulas para apresentação de um por um. Sempre tem aqueles espertos que vão querer driblar inventando a história, aí terá que exercer o seu poder criativo...

10- A sala de aula é o ambiente propício para o aluno criar o hábito de ler ou hábito deve ser cultivado em outro espaço, a exemplo da leitura diária em casa?
R- Como dissemos na questão anterior, pode ser germinado na escola para então ser cultivado em casa. A escola é um ambiente propício para criar atmosfera de leitura, sobretudo quando a questão é aluno carente de comunidade problemática, uma vez que nesse caso o ambiente no lar não é favorável ao processamento cognitivo do aluno. Depois que a semente estiver plantada, pode ter certeza que ela germinará se for regada, há algumas que não são regadas, mas sobrevivem ainda assim, portanto é importante que não seja arrancada. Daí a importância da escola que pode ser a terra que a acolheu.

domingo, 4 de julho de 2010

A VERDADE E O DISCURSO CIENTÍFICO

A VERDADE E O DISCURSO CIENTÍFICO

Solange Carlos de Carvalho*

“..e conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”
(JOÃO, 8:32)
I Introdução
A finalidade deste estudo é levar à reflexão sobre a verdade no discurso científico, sobre o que venha a ser a verdade nesse discurso ou mesmo pensar até que ponto a ciência revela a verdade. A verdade científica vem com a proposta de tentar descartar as outras verdades, ou seja, ela se pretende “absoluta”.
Pretendemos mostrar que a verdade científica não escapa à influência histórica.
No final do século XV, com resgate da cultura greco-latina, há uma cultura de racionalização. A verdade religiosa era o referencial, no final desse século esta verdade entra em crise dando lugar à razão. O homem busca ser senhor do seu destino. A verdade racionalizada se impõe para ser o “discurso verdadeiro” . A partir do século XVI, dá-se o início da Revolução Científica, cujo apogeu será atingido apenas no século XVIII. No século XIX, o modelo científico de racionalidade se estende às ciências sociais.
Em sua estrutura teórica, a verdade poderia estar bem inserida dentro dos estudos sobre o discurso científico. Neste artigo, no entanto, optamos por trabalhar a verdade a partir da ótica de dois cientistas que causaram impacto na comunidade científica com a contribuição de suas obras: Tomas S. Kuhn e Karl Popper.
Depois da discussão sobre a hegemonia do discurso científico, passaremos a refletir sobre uma possível compatibilização no discurso de Kuhn e Popper, com o fim de conjecturarmos sobre em qual discurso se encontra a verdade, ou pelo menos, que posicionamento estaria no caminho mais “acertado” em busca da verdade, se Popper que privilegia o espírito crítico do cientista, ou se Kuhn que busca respaldo na história da ciência?
Por fim, teceremos algumas considerações a respeito da verdade científica e da a repercussão do pensamento kuhniano e popperiano na comunidade científica.

2 A construção do discurso científico
Para adentrarmos na questão dos efeitos de dominação da ciência, precisamos antes retomar à genealogia do discurso científico. Na origem desse discurso, encontra-se a verdade como primeiríssimo elemento constitutivo da ciência. A problemática estaria no seu conceito. ... Mas “o que é a verdade?”, como perplexamente indagou Pilatos (João, 18:38a) por ocasião do julgamento de Jesus., a resposta certamente faz parte do jogo de poder em que estão inseridas as práticas sociais.
As verdades estão todas intrinsecamente inseridas a partir de uma prática de poder e exercem uma força nas pessoas e nas sociedades que as aceitam. O campo das relações sociais é um campo de poder que define o que vem a ser verdadeiro em cada momento para uma pessoa ou para toda a sociedade em uma dada época.
Em que pese ser a verdade constituída para a ação, ela necessita de algo que a torne válida como uma verdade socialmente relevante e aceitável. A verdade é histórica, ou seja, tem caráter relativo; não é perene, pois o jogo de poder ameaça sua estabilidade, posto que a coloca sob a influência da história, numa luta cerrada para permanecer credenciada. A verdade instituída pode entrar em conflito com outra divergente, a nova verdade, esta última, por sua vez, tem por meta desconstruir a primeira para que então possa se auto-afirmar. As verdades não surgem isoladamente, elas se articulam em sentido mais amplo através da construção de um discurso.
O status conferido à ciência na modernidade camufla todo o conflito da sua gênese, o qual pode ser remontado até as disputas do século VI a.C., quando a verdade dos poetas gregos se validava pela autoridade de quem o proferia e pelo ritual que o definia. Era uma verdade legitimada pela autoridade da escrita consagrada e confirmada pela prática ancestral que remetia à identidade social dos gregos. Uma verdade que impunha respeito (sobre o acontecido e o que viria a acontecer). Uma verdade que estava descrita no destino de cada um. Quase um século depois, esta verdade entra em crise dando lugar ao conteúdo do enunciado e não ao ato da enunciação. Começa-se a desconstruir a tradição da autoridade como símbolo de validação e se desloca para a busca de sentido naquilo que se diz. A validação da antiga verdade “reveladora” cede lugar a um procedimento que analise a forma da verdade enunciada e seu objeto. Passam a vigorar os critérios de verdadeiro e falso como formas de validação da verdade. A verdade socrática estabelece o critério da razão como validação de qualquer forma de verdade. Essa razão está em relação a uma essência natural das coisas e é nessa essência que agora se descobre a verdade natural do ser.
O saber científico apresenta-se coerente com o princípio epistemológico do método empírico que o sustenta, segundo o qual nada que não for comprovado não pode ser verdadeiro.
O que valida um discurso científico como verdadeiro, a partir do século XVII, é a utilidade como sua referência mais significativa e o método da empiria. Comprovação empírica e utilidade deram um novo sentido ao símbolo da verdade. A verdade vai incorporar o poder prático da técnica, o poder de intervir na mudança da própria natureza. O símbolo moderno de verdade científica gerou-se na busca consciente de um poder, racional, sobre a natureza.
O discurso religioso foi hegemônico durante séculos, os demais discursos ajustavam-se ao padrão de validação da verdade religiosa, pois esta mostrava sua superioridade mediante o caráter “revelado” (afinal de contas, que outra verdade humana poderia competir com o sentido divino?).
A modernidade, no entanto, suplantou o sentido revelado como critério de validação da verdade pelo sentido racional. A razão passou a se instituir como mediadora da verdade moderna.
O discurso científico vai, pois, construir a verdade científica, apresentada como uma evidência natural, incontestável e despojada de qualquer metaforização, pelo contrário, tem a pretensão de denotar fatos concretos. Sua naturalização lhe outorga um status de poder superior a quaisquer outras verdades, as quais deverão passar pelo crivo da verdade científica para validar ou não sua aceitação social.
Nenhuma outra forma de verdade parece fugir à historicidade, e conseqüentemente à relatividade, como o faz a verdade científica. Esta pretende escapar a influência histórica e se autoconstitui como uma verdade natural.
Na contemporaneidade, a aceitação social de um discurso e das práticas por ele propostas corresponde, em grande parte, a seu grau de cientificidade. Uma verdade será validada como tal se for capaz de se ajustar aos critérios de verificação do discurso científico, do contrário incorrerá em sua desconstrução pela sociedade. O sujeito contemporâneo se pauta a partir das verdades que considera cientificamente aceitáveis, resiste fortemente a outros tipos de verdades que não sejam comprováveis pelo ponto de vista da ciência.

4 A hegemonia do discurso científico
Souza-Santos (2001, p. 9) reconhece que estamos no fim de um ciclo de hegemonia de certa ordem científica. Ele parte da caracterização do modelo de racionalidade que preside a ciência moderna e aponta os elementos que promovem a sua crise. Afirma ainda que tal modelo de racionalidade científica se constitui a partir da revolução científica do século XVI que se desenvolveria nos séculos seguintes predominantemente nas ciências naturais. Somente no século XIX, este modelo se estenderia às ciências sociais, partindo assim para um modelo global de racionalidade científica. Que se diferencia do senso comum e das ciências humanas. Boaventura descreve a crise do paradigma dominante, considerada irreversível, iniciada por Einstein e a mecânica quântica que é o resultado de uma pluralidade de condições tanto sociais, quanto teóricas.
O fato é que o objeto de luta dos cientistas de hoje é o mesmo de há trinta anos: a luta pelo “comando” da teoria nos procedimentos de investigação. Avaliar uma teoria é a questão:
Melhores ou piores, as teorias somos nós a passar no espelho da nossa prática científica dentro do espelho maior da nossa prática de cidadãos (...). A prática é a única força vidente que nos permite avaliar as teorias e manter uma relação cordial com os fatos (...).A relação entre a teoria e os fatos é sempre uma relação às cegas (SOUZA-SANTOS, 2000, p. 95, 96).

4 Popper e Kuhn: pontos e contrapontos
As teses de Kuhn abalaram a convicção de que a ciência seria um empreendimento racional, o que permitiu uma revisão de aspectos metodológicos, que só favoreceu Filosofia da ciência.
A fim de compreender os contrapontos e nortear o leitor deste artigo na busca de pontos convergentes entre dois grandes cientistas, vale retomar algumas considerações.
A concepção dominante na época (1930) era que a ciência natural procedia indutivamente, quando Popper apresenta sua metodologia das ciências empíricas, causando impacto entre os empiristas lógicos que acreditavam ser a indução o método adequado para se fundamentar ou justificar sua hipótese. Popper se vale da dedução para excluir hipóteses falsas. Tanto a lógica indutiva quanto a dedutiva são métodos racionais. Ora, se a ciência não se nortear por nenhum deles, será então irracional, e isso nos parece pouco provável.
Uma convergência entre Kuhn e Popper se dá quando Kuhn afirma que “o caminho trilhado pela ciência não obedecia a nada que tenha semelhança com regra indutiva” entretanto Kuhn não recomenda a busca da refutação como o fez Popper. O que se pode inferir da afirmação de Kuhn é que ele dá respaldo ao irracionalismo em ciência, no que foi duramente criticado, uma vez que acredita que o abandono de um paradigma não acontece por sua refutação empírica, mas pela morte de seus seguidores e descreve o cientista normal como um a-crítico, obstinado, que não abre mão de sua hipótese mesmo diante de contra-exemplos, Popper acredita que tal postura deve ser abandonada em detrimento de uma atitude crítica, aberta à refutação, pois apenas testando hipóteses ou teorias se pode melhor desenvolver teorias e se aproximar mais da verdade.
Graças ao paradigma o cientista que atira na ciência normal (prática científica não revolucionária) não é o pensador crítico como, como interpreta Popper, pois tal cientista não contesta o paradigma, pelo contrário, procura se ajustar a ele. Este é um dos grandes contrapontos entre Kuhn e Popper, em que para este, o cientista deve ter atividade crítica e revolucionária sempre, para aquele não é o que s percebe na história da ciência.
Segundo Popper (1978), as teorias são conjecturas que explicam a natureza e quando não conseguem, entram em crise, dando margem a novas conjecturas que possam explicar as discrepâncias. Para ele a verdadeira ciência deveria fazer conjecturas ousadas a partir das quais o cientista procuraria refutá-las com base em experimentos. Seu método consiste em mostrar que as teorias são falsas por contradizerem resultados empíricos. Método este que se tornou conhecido como falseacionismo. Este não é um simples critério de testabilidade, mas todo um conjunto de procedimentos que leva à redução do erro nas teorias científicas. O fato é que Kuhn põe em dúvida a existência de falseamento. Para Kuhn o trabalho do cientista é condicionado por paradigmas. Os paradigmas científicos ditam o método e os procedimentos aplicáveis em certo contexto histórico da ciência. As revoluções representam momento de descrédito do paradigma em vigor, ao mesmo tempo, momento de transição à nova proposta de se fazer ciência.
O paradigma propõe uma nova solução, novos conceitos e terminologias para antigos problemas que o paradigma anterior não fora capaz de resolver e por isso entrou em colapso. Com uma solução convincente, o novo paradigma vai se impondo junto à comunidade científica. Essa substituição não ocorre de um modo rápido, o período de Crise, caracterizado pela transição de um paradigma a outro, pode ser longo. A crise mostra que o espírito crítico e a audácia na busca da verdade não são características do cientista, como dizia Popper. O cientista não questiona aquilo que já aprendeu, e sim o defende de modo insistente e procura resistir a mudanças bruscas que acarretem uma redefinição (feita por outro cientista, claro) radical do trabalho até então realizado, que são as realizadas por outros cientistas. Segundo o princípio kuhniano da tenacidade, a imagem do cientista é a de um sujeito profundamente conservador e que a todo o custo procura resistir a mudança.
Ficamos diante de um impasse: se Kuhn, baseado na análise das ciências, tem razão, ou Popper para quem o espírito crítico é a postura mais saudável para a ciência. Segundo Lackatos (1979, p. 112), diante do reconhecimento kuhniano do fracasso do justificacionismo e do falseacionismo quando das explicações racionais do desenvolvimento científico, parece voltar ao irracionalismo religioso. Duro é para nós concebermos a ciência como irracional. Embora Kunh não defenda explicitamente a irracionalidade científica, mas sim a historicidade da verdade científica, é o que deixa transparecer quando explica a mudança de um “paradigma” a outro como uma conversão mística que não pode se guiar pelas regras da razão. Certo é que sempre haverá defensores de uma teoria dominante e defensores de uma nova teoria na qual acreditam que terá êxito e poderá ser aplicada. O que pode haver de irracional nisso?
Um dos contrapontos entre Popper e Kunh é que para o primeiro, a mudança científica é racional, ou pode ser reconstituída racionalmente (a lógica da descoberta) enquanto para Kunh, a mudança do paradigma não se pauta pela razão (psicologia – social – da descoberta). A contraposição entre o modelo lógico de ciência popperiano e a descrição da ciência baseada na história e no modelo de ciência paradigmática é sempre interessante. A psicologia, em Popper, só é necessária à explicação das descobertas científicas e não à descrição da estrutura lógica em ciência. Para Kuhn a psicologia interessa para explicar a adesão do cientista a um paradigma. Deixar a história, a psicologia e a sociologia da comunidade científica é teorizar sobre a ciência que não existe. Tamanha divergência terá implicações nas ciências sociais, para a qual, segundo a ótica de Souza-Santos (2001, p. 34), a verdade está no poder.
O modelo de ciência guiado por paradigma enfraquece a idéia de verdade absoluta, uma vez que a verdade seria referenciada por paradigmas diferentes. Assim, as idéias de ausência de regras metodológicas e de verdade relativa afastam Kuhn dos pressupostos de Popper.
A escolha entre paradigmas alternativos fundamenta-se em fatores históricos, sociológicos e psicológicos. Kuhn, em sua obra preciosa para a racionalidade científica, busca transcorrer da história da ciência para a epistemologia, passando por generalizações sobre as condições psicossociais que tornam possível o fazer científico. Procura pontos de interação entre as razões psicossociais que se fazem presentes no processo da racionalidade científica. A partir da reflexão kuhniana, determinado paradigma sai da fase normal para reconhecer possíveis anomalias, a iminência de uma crise e de uma revolução. Ou simplesmente, se constatado que as fases kuhnianas não são inflexíveis na história da ciência, ainda assim, sempre ajudarão a esclarecer a obscuridade racional que é a ciência

5 Considerações finais
Neste artigo, a verdade e o discurso científico foram discutidos sob os prismas de Karl Popper e de Thomas Kuhn. Vale ressaltar que o tema da verdade, além de possuir implicações bastante relevantes para estudos sobre a filosofia da ciência, necessita ser examinado com maior profundidade sob vários ângulos. Isso porque a verdade no discurso científico não é apenas plural nas suas definições, mas nos diferentes contextos da sua existência e construção. Em nosso parecer, o seu caráter universalista é adequado como ferramenta teórica para apurar a reflexão.
Certamente que o discurso científico hoje se distingue do que vigorava nos meados do século XIX. Estamos em pleno século XXI e ainda vivemos sob os ditames da ciência. Uma ciência que está em contradição com sua proposta; do que ela combateu a vida inteira, hoje ela é refém, pois está presa a um dogmatismo. As pessoas ainda a usam em seus discursos como argumento de autoridade: “a ciência diz...”; “isso é cientificamente comprovado”. Sabemos, no entanto, que tais afirmações não são seguras, uma vez que nada é de fato comprovado.
Diante dessa situação paradoxal que vigora nos dias atuais, perguntamos a nós mesmos: Qual o valor de tanto desenvolvimento científico, se ainda nos encontramos no mais absoluto reino da incredulidade epistemológica? (como provavelmente acontecia nas épocas de crise da ciência) Essa sensação de “perda irreparável”, como dramatiza Souza-Santos (2001, p. 8), seja talvez a “cortina de medo” por trás da qual nos escondemos. Temos medo do novo, do desconhecido.
Como no processo de investigação sempre trabalhamos com o inesperado, o “bom senso” nos diz que é preciso, nesta fase de transição, de provável crise, que se faça uma reflexão epistemológica sobre a possibilidade de ser o conhecimento científico uma prática de saber como outra. De acordo com Souza-Santos (2001, p. 50), essa insegurança, nesse período de revolução científica é devido ao fato de sermos muito avançados em nossa reflexão epistemológica e o passado nos deixou céticos quanto ao futuro.
Acima de tudo, o caminho que trilhamos neste estudo serve, ao menos, como uma reflexão sobre a desconstrução da verdade absoluta no discurso científico, atendendo assim ao nosso propósito. Não houve a pretensão de esgotar o tema neste trabalho, mas apenas de apresentar uma modesta contribuição sobre sua complexidade.


REFERÊNCIAS


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SOUZA-SANTOS, Boaventura. Um Discurso sobre as Ciências. Edições de Afrontamento: Porto, 2001.
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