VAMOS SENTIR DE PERTO A LÍNGUA EM MOVIMENTO

A fala é o foco para a percepção do balanço da língua. De todas as coisas que expressamos oralmente, somente uma ínfima parte é apreendida pelos dicionários e, acreditem, muitas estão destinadas a um obscuro repouso... é isso mesmo! ao asilo das palavras. Não adianta querer ressucitar defunto, dizendo que o latim não morreu, que está vivíssimo entre nós ou com roupagens novas. Morreu sim, e está enterradinho da Silva!Está bem, pode até ter reencarnado, mas ganhou nova identidade... e nova alma! A língua viva está em movimento, na boca do povo, como dizia o saudoso Souto Maior. Pergunto: A esse uso, chamaremos ERRO? Talvez DESVIO? No uso, ela transforma-se e podemos chamar isso de VARIAÇÃO!

domingo, 4 de julho de 2010

A VERDADE E O DISCURSO CIENTÍFICO

A VERDADE E O DISCURSO CIENTÍFICO

Solange Carlos de Carvalho*

“..e conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará”
(JOÃO, 8:32)
I Introdução
A finalidade deste estudo é levar à reflexão sobre a verdade no discurso científico, sobre o que venha a ser a verdade nesse discurso ou mesmo pensar até que ponto a ciência revela a verdade. A verdade científica vem com a proposta de tentar descartar as outras verdades, ou seja, ela se pretende “absoluta”.
Pretendemos mostrar que a verdade científica não escapa à influência histórica.
No final do século XV, com resgate da cultura greco-latina, há uma cultura de racionalização. A verdade religiosa era o referencial, no final desse século esta verdade entra em crise dando lugar à razão. O homem busca ser senhor do seu destino. A verdade racionalizada se impõe para ser o “discurso verdadeiro” . A partir do século XVI, dá-se o início da Revolução Científica, cujo apogeu será atingido apenas no século XVIII. No século XIX, o modelo científico de racionalidade se estende às ciências sociais.
Em sua estrutura teórica, a verdade poderia estar bem inserida dentro dos estudos sobre o discurso científico. Neste artigo, no entanto, optamos por trabalhar a verdade a partir da ótica de dois cientistas que causaram impacto na comunidade científica com a contribuição de suas obras: Tomas S. Kuhn e Karl Popper.
Depois da discussão sobre a hegemonia do discurso científico, passaremos a refletir sobre uma possível compatibilização no discurso de Kuhn e Popper, com o fim de conjecturarmos sobre em qual discurso se encontra a verdade, ou pelo menos, que posicionamento estaria no caminho mais “acertado” em busca da verdade, se Popper que privilegia o espírito crítico do cientista, ou se Kuhn que busca respaldo na história da ciência?
Por fim, teceremos algumas considerações a respeito da verdade científica e da a repercussão do pensamento kuhniano e popperiano na comunidade científica.

2 A construção do discurso científico
Para adentrarmos na questão dos efeitos de dominação da ciência, precisamos antes retomar à genealogia do discurso científico. Na origem desse discurso, encontra-se a verdade como primeiríssimo elemento constitutivo da ciência. A problemática estaria no seu conceito. ... Mas “o que é a verdade?”, como perplexamente indagou Pilatos (João, 18:38a) por ocasião do julgamento de Jesus., a resposta certamente faz parte do jogo de poder em que estão inseridas as práticas sociais.
As verdades estão todas intrinsecamente inseridas a partir de uma prática de poder e exercem uma força nas pessoas e nas sociedades que as aceitam. O campo das relações sociais é um campo de poder que define o que vem a ser verdadeiro em cada momento para uma pessoa ou para toda a sociedade em uma dada época.
Em que pese ser a verdade constituída para a ação, ela necessita de algo que a torne válida como uma verdade socialmente relevante e aceitável. A verdade é histórica, ou seja, tem caráter relativo; não é perene, pois o jogo de poder ameaça sua estabilidade, posto que a coloca sob a influência da história, numa luta cerrada para permanecer credenciada. A verdade instituída pode entrar em conflito com outra divergente, a nova verdade, esta última, por sua vez, tem por meta desconstruir a primeira para que então possa se auto-afirmar. As verdades não surgem isoladamente, elas se articulam em sentido mais amplo através da construção de um discurso.
O status conferido à ciência na modernidade camufla todo o conflito da sua gênese, o qual pode ser remontado até as disputas do século VI a.C., quando a verdade dos poetas gregos se validava pela autoridade de quem o proferia e pelo ritual que o definia. Era uma verdade legitimada pela autoridade da escrita consagrada e confirmada pela prática ancestral que remetia à identidade social dos gregos. Uma verdade que impunha respeito (sobre o acontecido e o que viria a acontecer). Uma verdade que estava descrita no destino de cada um. Quase um século depois, esta verdade entra em crise dando lugar ao conteúdo do enunciado e não ao ato da enunciação. Começa-se a desconstruir a tradição da autoridade como símbolo de validação e se desloca para a busca de sentido naquilo que se diz. A validação da antiga verdade “reveladora” cede lugar a um procedimento que analise a forma da verdade enunciada e seu objeto. Passam a vigorar os critérios de verdadeiro e falso como formas de validação da verdade. A verdade socrática estabelece o critério da razão como validação de qualquer forma de verdade. Essa razão está em relação a uma essência natural das coisas e é nessa essência que agora se descobre a verdade natural do ser.
O saber científico apresenta-se coerente com o princípio epistemológico do método empírico que o sustenta, segundo o qual nada que não for comprovado não pode ser verdadeiro.
O que valida um discurso científico como verdadeiro, a partir do século XVII, é a utilidade como sua referência mais significativa e o método da empiria. Comprovação empírica e utilidade deram um novo sentido ao símbolo da verdade. A verdade vai incorporar o poder prático da técnica, o poder de intervir na mudança da própria natureza. O símbolo moderno de verdade científica gerou-se na busca consciente de um poder, racional, sobre a natureza.
O discurso religioso foi hegemônico durante séculos, os demais discursos ajustavam-se ao padrão de validação da verdade religiosa, pois esta mostrava sua superioridade mediante o caráter “revelado” (afinal de contas, que outra verdade humana poderia competir com o sentido divino?).
A modernidade, no entanto, suplantou o sentido revelado como critério de validação da verdade pelo sentido racional. A razão passou a se instituir como mediadora da verdade moderna.
O discurso científico vai, pois, construir a verdade científica, apresentada como uma evidência natural, incontestável e despojada de qualquer metaforização, pelo contrário, tem a pretensão de denotar fatos concretos. Sua naturalização lhe outorga um status de poder superior a quaisquer outras verdades, as quais deverão passar pelo crivo da verdade científica para validar ou não sua aceitação social.
Nenhuma outra forma de verdade parece fugir à historicidade, e conseqüentemente à relatividade, como o faz a verdade científica. Esta pretende escapar a influência histórica e se autoconstitui como uma verdade natural.
Na contemporaneidade, a aceitação social de um discurso e das práticas por ele propostas corresponde, em grande parte, a seu grau de cientificidade. Uma verdade será validada como tal se for capaz de se ajustar aos critérios de verificação do discurso científico, do contrário incorrerá em sua desconstrução pela sociedade. O sujeito contemporâneo se pauta a partir das verdades que considera cientificamente aceitáveis, resiste fortemente a outros tipos de verdades que não sejam comprováveis pelo ponto de vista da ciência.

4 A hegemonia do discurso científico
Souza-Santos (2001, p. 9) reconhece que estamos no fim de um ciclo de hegemonia de certa ordem científica. Ele parte da caracterização do modelo de racionalidade que preside a ciência moderna e aponta os elementos que promovem a sua crise. Afirma ainda que tal modelo de racionalidade científica se constitui a partir da revolução científica do século XVI que se desenvolveria nos séculos seguintes predominantemente nas ciências naturais. Somente no século XIX, este modelo se estenderia às ciências sociais, partindo assim para um modelo global de racionalidade científica. Que se diferencia do senso comum e das ciências humanas. Boaventura descreve a crise do paradigma dominante, considerada irreversível, iniciada por Einstein e a mecânica quântica que é o resultado de uma pluralidade de condições tanto sociais, quanto teóricas.
O fato é que o objeto de luta dos cientistas de hoje é o mesmo de há trinta anos: a luta pelo “comando” da teoria nos procedimentos de investigação. Avaliar uma teoria é a questão:
Melhores ou piores, as teorias somos nós a passar no espelho da nossa prática científica dentro do espelho maior da nossa prática de cidadãos (...). A prática é a única força vidente que nos permite avaliar as teorias e manter uma relação cordial com os fatos (...).A relação entre a teoria e os fatos é sempre uma relação às cegas (SOUZA-SANTOS, 2000, p. 95, 96).

4 Popper e Kuhn: pontos e contrapontos
As teses de Kuhn abalaram a convicção de que a ciência seria um empreendimento racional, o que permitiu uma revisão de aspectos metodológicos, que só favoreceu Filosofia da ciência.
A fim de compreender os contrapontos e nortear o leitor deste artigo na busca de pontos convergentes entre dois grandes cientistas, vale retomar algumas considerações.
A concepção dominante na época (1930) era que a ciência natural procedia indutivamente, quando Popper apresenta sua metodologia das ciências empíricas, causando impacto entre os empiristas lógicos que acreditavam ser a indução o método adequado para se fundamentar ou justificar sua hipótese. Popper se vale da dedução para excluir hipóteses falsas. Tanto a lógica indutiva quanto a dedutiva são métodos racionais. Ora, se a ciência não se nortear por nenhum deles, será então irracional, e isso nos parece pouco provável.
Uma convergência entre Kuhn e Popper se dá quando Kuhn afirma que “o caminho trilhado pela ciência não obedecia a nada que tenha semelhança com regra indutiva” entretanto Kuhn não recomenda a busca da refutação como o fez Popper. O que se pode inferir da afirmação de Kuhn é que ele dá respaldo ao irracionalismo em ciência, no que foi duramente criticado, uma vez que acredita que o abandono de um paradigma não acontece por sua refutação empírica, mas pela morte de seus seguidores e descreve o cientista normal como um a-crítico, obstinado, que não abre mão de sua hipótese mesmo diante de contra-exemplos, Popper acredita que tal postura deve ser abandonada em detrimento de uma atitude crítica, aberta à refutação, pois apenas testando hipóteses ou teorias se pode melhor desenvolver teorias e se aproximar mais da verdade.
Graças ao paradigma o cientista que atira na ciência normal (prática científica não revolucionária) não é o pensador crítico como, como interpreta Popper, pois tal cientista não contesta o paradigma, pelo contrário, procura se ajustar a ele. Este é um dos grandes contrapontos entre Kuhn e Popper, em que para este, o cientista deve ter atividade crítica e revolucionária sempre, para aquele não é o que s percebe na história da ciência.
Segundo Popper (1978), as teorias são conjecturas que explicam a natureza e quando não conseguem, entram em crise, dando margem a novas conjecturas que possam explicar as discrepâncias. Para ele a verdadeira ciência deveria fazer conjecturas ousadas a partir das quais o cientista procuraria refutá-las com base em experimentos. Seu método consiste em mostrar que as teorias são falsas por contradizerem resultados empíricos. Método este que se tornou conhecido como falseacionismo. Este não é um simples critério de testabilidade, mas todo um conjunto de procedimentos que leva à redução do erro nas teorias científicas. O fato é que Kuhn põe em dúvida a existência de falseamento. Para Kuhn o trabalho do cientista é condicionado por paradigmas. Os paradigmas científicos ditam o método e os procedimentos aplicáveis em certo contexto histórico da ciência. As revoluções representam momento de descrédito do paradigma em vigor, ao mesmo tempo, momento de transição à nova proposta de se fazer ciência.
O paradigma propõe uma nova solução, novos conceitos e terminologias para antigos problemas que o paradigma anterior não fora capaz de resolver e por isso entrou em colapso. Com uma solução convincente, o novo paradigma vai se impondo junto à comunidade científica. Essa substituição não ocorre de um modo rápido, o período de Crise, caracterizado pela transição de um paradigma a outro, pode ser longo. A crise mostra que o espírito crítico e a audácia na busca da verdade não são características do cientista, como dizia Popper. O cientista não questiona aquilo que já aprendeu, e sim o defende de modo insistente e procura resistir a mudanças bruscas que acarretem uma redefinição (feita por outro cientista, claro) radical do trabalho até então realizado, que são as realizadas por outros cientistas. Segundo o princípio kuhniano da tenacidade, a imagem do cientista é a de um sujeito profundamente conservador e que a todo o custo procura resistir a mudança.
Ficamos diante de um impasse: se Kuhn, baseado na análise das ciências, tem razão, ou Popper para quem o espírito crítico é a postura mais saudável para a ciência. Segundo Lackatos (1979, p. 112), diante do reconhecimento kuhniano do fracasso do justificacionismo e do falseacionismo quando das explicações racionais do desenvolvimento científico, parece voltar ao irracionalismo religioso. Duro é para nós concebermos a ciência como irracional. Embora Kunh não defenda explicitamente a irracionalidade científica, mas sim a historicidade da verdade científica, é o que deixa transparecer quando explica a mudança de um “paradigma” a outro como uma conversão mística que não pode se guiar pelas regras da razão. Certo é que sempre haverá defensores de uma teoria dominante e defensores de uma nova teoria na qual acreditam que terá êxito e poderá ser aplicada. O que pode haver de irracional nisso?
Um dos contrapontos entre Popper e Kunh é que para o primeiro, a mudança científica é racional, ou pode ser reconstituída racionalmente (a lógica da descoberta) enquanto para Kunh, a mudança do paradigma não se pauta pela razão (psicologia – social – da descoberta). A contraposição entre o modelo lógico de ciência popperiano e a descrição da ciência baseada na história e no modelo de ciência paradigmática é sempre interessante. A psicologia, em Popper, só é necessária à explicação das descobertas científicas e não à descrição da estrutura lógica em ciência. Para Kuhn a psicologia interessa para explicar a adesão do cientista a um paradigma. Deixar a história, a psicologia e a sociologia da comunidade científica é teorizar sobre a ciência que não existe. Tamanha divergência terá implicações nas ciências sociais, para a qual, segundo a ótica de Souza-Santos (2001, p. 34), a verdade está no poder.
O modelo de ciência guiado por paradigma enfraquece a idéia de verdade absoluta, uma vez que a verdade seria referenciada por paradigmas diferentes. Assim, as idéias de ausência de regras metodológicas e de verdade relativa afastam Kuhn dos pressupostos de Popper.
A escolha entre paradigmas alternativos fundamenta-se em fatores históricos, sociológicos e psicológicos. Kuhn, em sua obra preciosa para a racionalidade científica, busca transcorrer da história da ciência para a epistemologia, passando por generalizações sobre as condições psicossociais que tornam possível o fazer científico. Procura pontos de interação entre as razões psicossociais que se fazem presentes no processo da racionalidade científica. A partir da reflexão kuhniana, determinado paradigma sai da fase normal para reconhecer possíveis anomalias, a iminência de uma crise e de uma revolução. Ou simplesmente, se constatado que as fases kuhnianas não são inflexíveis na história da ciência, ainda assim, sempre ajudarão a esclarecer a obscuridade racional que é a ciência

5 Considerações finais
Neste artigo, a verdade e o discurso científico foram discutidos sob os prismas de Karl Popper e de Thomas Kuhn. Vale ressaltar que o tema da verdade, além de possuir implicações bastante relevantes para estudos sobre a filosofia da ciência, necessita ser examinado com maior profundidade sob vários ângulos. Isso porque a verdade no discurso científico não é apenas plural nas suas definições, mas nos diferentes contextos da sua existência e construção. Em nosso parecer, o seu caráter universalista é adequado como ferramenta teórica para apurar a reflexão.
Certamente que o discurso científico hoje se distingue do que vigorava nos meados do século XIX. Estamos em pleno século XXI e ainda vivemos sob os ditames da ciência. Uma ciência que está em contradição com sua proposta; do que ela combateu a vida inteira, hoje ela é refém, pois está presa a um dogmatismo. As pessoas ainda a usam em seus discursos como argumento de autoridade: “a ciência diz...”; “isso é cientificamente comprovado”. Sabemos, no entanto, que tais afirmações não são seguras, uma vez que nada é de fato comprovado.
Diante dessa situação paradoxal que vigora nos dias atuais, perguntamos a nós mesmos: Qual o valor de tanto desenvolvimento científico, se ainda nos encontramos no mais absoluto reino da incredulidade epistemológica? (como provavelmente acontecia nas épocas de crise da ciência) Essa sensação de “perda irreparável”, como dramatiza Souza-Santos (2001, p. 8), seja talvez a “cortina de medo” por trás da qual nos escondemos. Temos medo do novo, do desconhecido.
Como no processo de investigação sempre trabalhamos com o inesperado, o “bom senso” nos diz que é preciso, nesta fase de transição, de provável crise, que se faça uma reflexão epistemológica sobre a possibilidade de ser o conhecimento científico uma prática de saber como outra. De acordo com Souza-Santos (2001, p. 50), essa insegurança, nesse período de revolução científica é devido ao fato de sermos muito avançados em nossa reflexão epistemológica e o passado nos deixou céticos quanto ao futuro.
Acima de tudo, o caminho que trilhamos neste estudo serve, ao menos, como uma reflexão sobre a desconstrução da verdade absoluta no discurso científico, atendendo assim ao nosso propósito. Não houve a pretensão de esgotar o tema neste trabalho, mas apenas de apresentar uma modesta contribuição sobre sua complexidade.


REFERÊNCIAS


ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência. Introdução ao jogo e a s suas regras. Edições Loyola: São Paulo 1983.
CARVALHO, Cecília M. de Carvalho. Construindo o saber. Metodologia Científica – Fundamentos e Técnicas. Papiros: Campinas.
HEMPEL, Carl. G. Filosofia da Ciência Natural Zahar: Rio de Janeiro, 1981.
KUHN, T.S. A Estrutura das Revoluções científicas Perspectiva: São Paulo, 1975.
LAKATOS, I. & MUSGRAVE, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. Edusp: São Paulo, 1979.
LOWY, Michael. As paisagens da verdade e a alegoria do mirante Busca Vida: São Paulo, 1998.
POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações. Pensamento UnB, 1978.
SOUZA-SANTOS, Boaventura. Um Discurso sobre as Ciências. Edições de Afrontamento: Porto, 2001.
______. Introdução sobre a uma ciência pós-moderna. 3ª.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

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